Retorno do X não é volta da normalidade.
Quem suspira de alívio ao saber que poderá voltar a usar a
rede para fins pessoais ou profissionais não entende, ou não quer entender, que
o fato de Moraes ter prevalecido na disputa contra Musk é um indicador
preocupante de total deterioração das liberdades de um país que já não pode se
dizer democrático. Não foi a lei que saiu vencedora deste embate, pois a lei –
e não qualquer lei, mas a Constituição – proíbe censura prévia, proíbe a
imposição de “deveres de não fazer” por via judicial, garante o devido processo
legal, protege a liberdade de expressão. Quem realmente saiu fortalecida foi
uma concepção muito particular do direito, que coloca a vontade de um único homem
acima de todo o ordenamento jurídico nacional, no que reportagem da Gazeta do
Povo chamou de “linha de magistratura ‘freestyle’”, em que Moraes “decide o que
quer, como quer e quando quer, sem se importar em preservar ao menos a
aparência de embasamento legal dos seus atos”.
Quando as liberdades e garantias democráticas são agredidas
constantemente sem que a sociedade se coloque com firmeza diante do agressor e
o faça parar, ele sente que pode ir além e testar novas formas de arbítrio
Os exemplos desse absolutismo jurídico são suficientes para
preencher uma volumosa coletânea, comparável às Constituições e códigos
comentados que se encontram nas prateleiras de advogados e magistrados Brasil
afora. Cidadãos são punidos das mais diversas formas, da censura on-line à
prisão preventiva, sem que se aponte nem mesmo os crimes pelos quais são
investigados ou de que são suspeitos – as prisões preventivas, aliás, são
infinitamente esticadas sem motivo razoável que as embase. Brasileiros são
acusados e condenados sem provas que atestem sua participação nos supostos
crimes, em uma abolição da chamada “individualização da conduta”. Toda a
população brasileira é ameaçada de multa e proibida de fazer algo que a lei não
veda, sem que seja parte no respectivo processo. Inquéritos eternos correm em
absoluto e injustificável sigilo, abastecidos por estruturas paralelas nas
quais é evidente que primeiro se escolhe um culpado, e só então busca-se algo
que o incrimine.
Tudo isso sem a menor necessidade de citar a base legal para
que tais medidas sejam tomadas – até porque, na maioria dos casos, tal base
legal simplesmente não existe, e citar a Constituição e as leis se tornaria
mais um embaraço que um apoio a muitas decisões. É assim que bordões
insistentemente repetidos em negritos, letras maiúsculas e salpicados com
inúmeras exclamações se tornam o argumento infalível que triunfa sobre todos os
códigos legais. A vontade de Alexandre de Moraes se tornou a lei, de uma forma
que nem Luís XIV (o monarca francês ao qual se atribui a frase “o Estado sou
eu”) jamais poderia imaginar. Se não há base jurídica para manter alguém preso
preventivamente – e às vezes até a Procuradoria-Geral da República o reconhece
–, mas Moraes deseja prolongar a prisão preventiva, ela é prolongada. Se a
Constituição proíbe censura prévia, mas Moraes quer impedir alguém se se
expressar nas mídias sociais, a pessoa é bloqueada. Se a lei não impede
brasileiros de usar VPNs para acessar um site, mas Moraes não quer que os
brasileiros usem o X, inventa-se uma regra com punições pesadas e
desproporcionais.
E o episódio envolvendo o X mostra o quanto isso foi
normalizado até por quem tem a obrigação moral de defender as liberdades
democráticas no país. Apenas um partido político, o Novo, acionou o STF para
conseguir a derrubada de toda a decisão de Moraes bloqueando o X. Todos os
demais atores do mundo político e empresarial, ou entidades de classe, ou se
calaram ou buscaram atacar apenas elementos acessórios da decisão, como a proibição
e a multa por uso de VPNs. No fundo, é como se validassem o bloqueio de toda
uma mídia social em represália ao não cumprimento de ordens claramente injustas
e inconstitucionais, limitando-se a querer arrancar alguns galhos mais
incômodos enquanto deixa em pé todo o tronco de uma árvore doente.
O autoritarismo se alimenta de todas essas omissões,
silêncios, medos e concessões. Quando a Constituição, as liberdades e garantias
democráticas, os códigos processuais e os princípios básicos de justiça são agredidos
constantemente sem que a sociedade se coloque com firmeza diante do agressor e
o faça parar, ele sente que pode ir além e testar novas formas de arbítrio. Se
recentemente comparamos o Brasil ao proverbial sapo na fervura, temos de
reconhecer que cada representante do povo, cada entidade de classe, cada
instituição da sociedade civil organizada que se cala, que normaliza o absurdo,
ajuda a firmar a mão que eleva a temperatura da água. Mas apenas soltá-la não
basta; é preciso puxá-la para longe do botão que regula o fogo e apagá-lo.
Editorial da GAZETA DO POVO do dia 11/10/2024
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