A “civilização” que Barroso quer não passa de ruínas
A “civilização” que Barroso quer não passa de ruínas
“O legado institucional que eu queria deixar é a total
recivilização do país”, afirmou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís
Roberto Barroso, em entrevista ao jornal Valor Econômico por ocasião da marca
de um ano à frente da corte. Uma frase aparentemente nobre, provavelmente dita
naquele tom de voz sereno que é característico das manifestações públicas de
Barroso, mas que revela a tentação constante, e na qual os ministros do STF têm
caído repetidas vezes, de fazer da cúpula do Judiciário uma espécie de “guia
genial” da nação brasileira.
Não é a primeira, e certamente não será a última indiscrição
desse tipo, e também não é exclusividade de Barroso. Um antecessor seu na
presidência do STF, Dias Toffoli, já se referiu a si e aos colegas como
“editores de um país inteiro” e um “poder moderador” de um suposto semipresidencialismo
brasileiro. Tais frases revelam a vontade de poder que move os ministros, mesmo
sem terem um mandato popular conferido nas urnas para tal. Barroso, no entanto,
vai além: ele não apenas quer o poder, mas o deseja para levar o país na
direção que ele deseja, como já afirmou inúmeras vezes em suas referências ao
papel “iluminista” e “contramajoritário” do STF, que tem a missão de “empurrar
a história na direção certa” – ou, melhor dizendo, a direção que Barroso julga
ser a certa.
Na “civilização” que o STF está criando, as convicções da
população pouco importam diante da ideologia de 11 “iluminados”; a corrupção
respira aliviada; e as liberdades e garantias democráticas são abolidas
Embora ele não tenha mencionado os temas na entrevista ao
Valor, sabemos, por exemplo, que Barroso considera sinais de “obscurantismo” e
“barbárie” (afinal, só se “civiliza” um bando de bárbaros) a opção dos
brasileiros pela defesa da vida desde a concepção, ou a convicção de que as
drogas fazem tanto mal aos indivíduos e à sociedade que é melhor o Estado
proibir totalmente seu uso. Sua colega (e também ex-presidente do STF) Cármen
Lúcia, em 2018, se disse preocupada com “uma mudança (...) conservadora em
termos de costumes. Às vezes, na minha compreensão de mundo, e é só na minha,
não significa que esteja certa, perigosamente conservadora”. Quando Barroso diz
ao Valor que “a democracia tem lugar para liberal, para conservador, para
progressista”, está apenas querendo enganar os incautos. Em sua “civilização”
não há lugar para certas posições morais.
Da mesma forma, na “civilização” que o STF está construindo,
antes e durante a presidência de Barroso, a corrupção tem passe livre e a
história do heroico combate à ladroagem é reescrita para transformar os
bandidos em vítimas, e os agentes da lei em bandidos. Baseando-se pura e
simplesmente em ilações, Dias Toffoli tem sido o grande protagonista desse
desmonte, especialmente nos últimos 12 meses, mas ele não age sozinho. Ainda
que neste assunto Barroso tenha uma coleção de bons votos – ele foi favorável,
por exemplo, à prisão em segunda instância, e contrário à suspeição de Sergio
Moro e à anulação de julgamentos em que delatores e delatados entregaram
simultaneamente suas alegações finais –, o atual presidente do STF tem sido rotineiramente
vencido, o que faz da corte, hoje, o maior promotor da impunidade no país.
O único caminho apontado por Barroso na entrevista para a
tal “recivilização” que ele almeja é o “fim desses pontos de tensão, como os
julgamentos sobre o 8 de janeiro” e os demais inquéritos abusivos que estão nas
mãos de Alexandre de Moraes. No entanto, o presidente do STF coloca ênfase
demais no encerramento dos processos, quando a maneira como eles terminarão é
muito mais essencial. O que é “civilizado”: um país que destrói a liberdade de
expressão, o devido processo legal, o direito à ampla defesa, a necessidade de
individualização de conduta? Ou um país onde a principal corte as defende e
protege com unhas e dentes? Encerrar os processos com uma série de condenações
que desafiam a ordem jurídica e o Estado de Direito não deixará o Brasil um
milímetro sequer mais próximo de um país “civilizado” – e Barroso é parte
integrante disso, pois votou pela aceitação de denúncias sem a devida
individualização de conduta, e tem votado pela condenação de réus do 8 de
janeiro contra os quais não há uma evidência sequer, além de ter defendido a
suspensão do X na entrevista ao Valor.
Este é o país que o STF está criando: um Brasil onde as
convicções da população pouco importam diante da ideologia de 11 “iluminados”;
onde a corrupção respira aliviada; onde as liberdades e garantias democráticas
são abolidas; onde ministros atropelam leis rotineiramente, reescrevendo-as
conforme sua vontade; onde os membros do STF mandam a discrição às favas,
participando de eventos sucessivos em que confraternizam com outros poderes e
com patrocinadores generosos, que têm interesses em processos na corte – e
Barroso fez pouco da necessidade de um código que evite absurdos como o
“Gilmarpalooza” anual lisboeta. Só alguém muito dominado pela húbris pode
chamar isso de “civilização”.
Editorial da Gazeta do Povo, do dia 04/10/2024
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