NUVEM DE AMEAÇAS
Jose Roberto Guzzo, para O Estado de S. Paulo.
O Brasil está em vias de se tornar talvez a
primeira e única democracia do mundo (no papel, pelo
menos, está escrito que isso aqui é uma democracia) onde a imprensa que se
descreve como “tradicional”, ou “grande”, apoia ativamente um projeto de lei
que agride a liberdade de expressão.
Ou se declara a favor, com
toda a franqueza, ou então dá o seu apoio em forma de silêncio; o resultado é
mais ou menos o mesmo. O projeto em questão, que acaba de ser aprovado no Senado por 44 votos num
total de 81 possíveis, e vai agora para a apreciação da Câmara dos Deputados, é
essa Lei da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet – mas podem
me chamar de “Lei das Fake News”. É um naufrágio de primeira classe para
os direitos individuais dos brasileiros.
A lei, aprovada num plenário vazio, por meio do
“voto eletrônico” e remoto, sem qualquer discussão séria e nenhuma
justificativa para a pressa extrema em sua tramitação, não provê liberdade, nem
responsabilidade, nem transparência. Para começo de conversa, qualquer lei que
se meta a aprimorar a liberdade está condenada, necessariamente, a produzir o
efeito contrário. Ela tem de dizer, em algum momento, que há liberdade “desde
que” – e esse “desde que”, por definição, vai diminuir a liberdade que a lei
pretendia “aprimorar”.
O texto aprovado, além disso, embaralha as
responsabilidades dos acusados de traficar notícias falsas e torna mais opaco o
lado já escuro das redes sociais. Em suma: faz o contrário do que anuncia.
Além de tudo o que tem de ruim, a nova lei parece
ser um caso clínico em matéria de hipocrisia. Alguém pode acreditar que os
políticos que pretendem regular aquilo que você diz no WhatsApp estejam
realmente interessados em banir a mentira da vida pública brasileira? Não é
isso o que mostra o exame da folha corrida dessa gente. Ninguém, aí, ficou
subitamente interessado em distinguir o falso do verdadeiro – o que querem, de
fato, é intimidar quem fala mal deles, criando uma nuvem de ameaças sobre todos
os que hoje usam o livre acesso à internet para dizer o que pensam. Não protege
o cidadão dos políticos. Protege os políticos do cidadão.
As pessoas fazem mau uso das redes
sociais? Sim, fazem – frequentemente, aliás, fazem um péssimo
uso. Mas os crimes que podem ser cometidos por meio da liberdade de expressão
já estão previstos há 80 anos no Código Penal Brasileiro, com penas
de multa, detenção ou reclusão. São a calúnia, a difamação e a injúria – só
esses três, pois nenhuma lei conseguiu até hoje definir algum outro. Existe,
além disso, todo um arsenal de punições cíveis para os que causem danos a quem
quer que seja por dizer mentiras em público, ou por fazer insultos, ou por
espalhar falsidades, ou por se expressar com malícia. Por que, então, criminalizar
o que está nas redes sociais, quando tudo que se pode fazer de mal pela palavra
já é crime?
Por Jose Roberto Guzzo.
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