DECISÕES DO SUPREMO CONTRA EXECUTIVO SÃO ATENTADOS A INDEPENDÊNCIA DOS PODERES.
Por Jose Roberto Guzzo, publicado n'O Estado de S. Paulo.
Ao impedir posse de
Alexandre Ramagem e expulsão de diplomatas venezuelanos, ministros do Supremo
avançam sobre decisões que são prerrogativa da Presidência
É
sempre perigoso, em ditaduras ou democracias, o indivíduo estar certo quando
quem manda no governo está errado - é justamente neste ponto, na verdade, que
tiranias e regimes democráticos ficam mais parecidos. Não faz muita diferença,
na prática, ser obrigado a obedecer uma ordem ilegal dada por um ditador ou por
um mandarim das instituições, que por vestir uma toga preta e ter ganhado uma
nomeação para o mais alto tribunal de Justiça do País, atribui a si próprio
poderes que a lei não lhe concede – e cujo julgamento não está sujeito a nenhum
tipo de controle, análise ou revisão por ninguém, no céu e na terra. Isso não é
Estado de Direito. É desordem com fantasia de “ordem.
Não há exemplo mais
agressivo desta deformação do que algumas das últimas decisões que o STF tem
tomado para proibir o Poder Executivo de fazer isso ou aquilo. A intenção, pelo
que dizem os magistrados, é impedir o governo de cometer abusos no uso do poder,
ou de praticar algum outro delito qualquer. No mundo das coisas reais, o que
tem resultado disso são atentados contra a independência dos Poderes da
República – como aconteceu com a decisão de proibir o presidente de nomear o
diretor da Polícia Federal, ou o seu ministro do Exterior de expulsar
diplomatas venezuelanos cuja presença no país foi considerada nociva aos
interesses nacionais. Pela Constituição, cabe ao Executivo, e a ninguém mais,
decidir livremente sobre uma questão e a outra. Mas dois ministros do STF, sem
a concordância dos outros nove, acharam que não - e por acharem que não a sua
opinião individual acabou valendo mais do que está escrito na lei.
Desta vez não são os
“inimigos das instituições”, como em geral se diz sobre os críticos do STF, que
ficaram chocados com o surto de onipotência dos ministros. “Não consigo encontrar
na Constituição nenhum dispositivo que justifique a um ministro da Suprema
Corte impedir a posse de um agente do Poder Executivo, por mera acusação de um
ex-participante do governo, sem que houvesse qualquer processo ou condenação”,
disse Ives Gandra Martins, um dos mais admirados juristas do Brasil e
participante ativo dos trabalhos da Constituinte. Não dá, realmente, para
acusar Ives Gandra de ser um bolsonarista raivoso que quer fechar o STF. (Em
sua declaração sobre o episódio da Polícia Federal ele teve a bondade,
inclusive, de chamar o ministro Alexandre de Moraes de “grande
constitucionalista”.)
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Ives Gandra Martins. |
O jurista, muito
simplesmente, observa que a decisão foi ilegal. “Se a partir de agora meras
suspeitas servirem, o Poder Judiciário estará revestido de um poder político
que não tem, constitucionalmente”, diz Gandra. Ele lembra o disparate que seria
essa violação da lei: qualquer magistrado, em qualquer comarca do Brasil,
poderia adotar o mesmo critério e impedir nomeações com base em denúncias que
não foram examinadas “em processos com o direito inviolável à ampla defesa”.
Suprimir esse direito é uma agressão direta da Constituição Federal, lembra
Gandra – e, nesse caso, as Forças Armadas teriam de intervir para repor “a lei
e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema.”
Não se trata apenas
de Ives Gandra. “Eu acho que o Judiciário exagerou”, disse o ex-presidente
Fernando Henrique, que também não pode ser dado como bolsonarista-raiz. “Foi
além do que é constitucional”. Dentro do próprio STF houve protestos claros e
públicos. O ministro Marco Aurélio Mello enviou um ofício ao presidente do STF,
Antônio Toffoli, propondo que o regimento do tribunal seja reformado para que
todas as decisões envolvendo atos de outros poderes tornem-se obrigatoriamente
sujeitas à votação do plenário - e não dependam mais da vontade um homem só.
“Há um Supremo, e não onze”, afirmou Marco Aurélio. “Alguns colegas, os que se
sentem semideuses, não vão gostar. Paciência.” O próprio presidente Toffoli,
enfim, mostrou-se contrário ao “ativismo judicial” e a decisões que proíbem o
governo de fazer isso ou aquilo porque o juiz que proibiu não concorda com
elas.
O Judiciário quer conter excessos, abusos e atos
ilegais do presidente da República? Tudo bem – mas está obrigado, mais do que
ninguém, a agir estritamente dentro da lei para fazer isso. A justiça, sem lei,
não vale nada.
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